Por Débora Reis Tavares
Mestre e doutoranda em literatura pela Universidade de São Paulo
A maneira como assistimos filmes, seriados, novelas e desenhos nunca mais foi a mesma depois da expansão dos sistemas de streaming. Amazon Prime, HBO Plus, Hulu, Netflix, PopCorn Time, YouTube são apenas algumas das plataformas que estão disponíveis para assinatura e que dispõem de um vasto catálogo em que é preciso “apenas” ter o acesso à internet.
Esses serviços oferecem vantagens indiscutíveis, desde a comodidade de estar em qualquer lugar e conseguir acessar tais conteúdos, escolher entre dublado e legendado, o baixo custo da assinatura, até a qualidade cinematográfica das produções, que chegam a ganhar prêmios como Oscar, Emmy e Globo de Ouro.
Os números também impressionam. Reed Hastings, fundador da Netflix, afirma que a empresa tem mais de 100 milhões de assinantes em quase 50 países. Juntos, Netflix e YouTube respondem por quase metade dos bits trafegados da internet mundial no horário nobre da TV americana. O sucesso dessas plataformas está relacionado ao baixo custo das assinaturas que, por sua vez, está atrelado à velocidade da internet disponível. Ou seja, em uma residência o gasto com o pacote de internet permite o acesso a essas plataformas. Geralmente a soma do plano de internet e da assinatura do Netflix, por exemplo, equivalem ao valor de um pacote de TV por assinatura. Isso faz com que muitas pessoas a abram mão da TV a cabo e contem apenas com os sistemas de streaming. Estamos diante de um dos mercados que mais movimentam capital no mundo, proveniente do Vale do Silício, na Califórnia, conhecido pelas inovações tecnológicas e formador de tendências culturais.
Além das questões financeiras, a maneira como consumimos esses conteúdos se modificou drasticamente no que ficou conhecido como maratonas, ou binge watching. Estão disponíveis temporadas inteiras de seriados e torna-se atrativo o fato do próximo episódio começar em segundos, sendo possível assistir em algumas horas uma temporada completa, uma trilogia, o que for. Esse tipo de contato com os objetos culturais alteraram uma noção sedimentada de forma, ou seja, a ideia de começo, meio e fim do enredo. Ao assistir diversos episódios em série, o centro das nossas atenções se vira para o que aconteceu, em vez de como aconteceu. A estrutura narrativa fica em segundo plano, dando lugar à totalidade. Esse consumo ávido faz com que as produções sejam desenvolvidas priorizando a chegada mais rápida possível ao final da trama, cujo exemplo evidente está na recente Thirteen Reasons Why.
Do lado oposto desta tendência temos o caso da HBO, que detém o seu conteúdo na sua plataforma própria, muito semelhante à Netflix. Porém, a exibição do célebre Game of Thrones segue o formato folhetinesco: em vez de disponibilizar a temporada completa, a plataforma exibe os episódios em sincronia com a televisão. E essa escolha ainda deixa os espectadores presos ao episódio da semana, discutindo e elaborando teorias até a exibição do capítulo seguinte. Por ser uma fórmula que se provou frutífera, a própria Netflix passou a exibir alguns conteúdos semanalmente, como no caso de Better Call Saul, que inaugurou esse formato, mas ainda manteve o oferecimento de temporadas completas.
Por que ainda gostamos de ficção?
Mesmo com essa mudança radical na indústria do entretenimento, o que podemos observar de comum dessa nova condição e a tradição no entretenimento é o interesse em acompanhar estórias, sejam elas de uma vez, ou aos poucos. Ainda em uma situação totalmente diferente do século XIX, em que surgiu o formato do folhetim (capítulos de um livro publicados em jornais semanalmente), continuamos sedentos pelo consumo de ficções, por haver um diálogo intrínseco com a maneira como vivemos. Até em obras de fantasia como O Senhor dos Anéis possuem um paralelo evidente com seu momento histórico – afinal após o trágico resultado da II Guerra o que poderia ser mais desejado do que escapar da morte eminente e vislumbrar um ser que vive para sempre, como os elfos? E não foi a internet que nos trouxe essa curiosidade de olhar o mundo pelo ponto de vista do outro, isso surgiu há milhares de anos e tem muito a ver com a definição de Arte.
A arte pode ser vista como um conceito que oscila de acordo com determinado contexto histórico, afinal em algumas épocas certas produções são tidas como arte, outras não. Ou seja, ao longo de cada momento na história podemos perceber que existe a expressão de uma ideia que surge de uma criação humana, e que dialoga com o que aquela época pensa.
Ainda, todo objeto artístico possui sua linguagem própria. A maneira como um incêndio for representado no cinema, na pintura, na escultura, na arquitetura, na música, na literatura e na dança será totalmente diferente, justamente por cada uma dessas artes possuir sua linguagem específica. E a linguagem artística é um dos grandes fatores de inovação no decorrer dos anos. Isso fez com que um novo formato surgisse dentro da indústria cinematográfica: os seriados, que possuem exemplos de objetos de arte tão complexos como filmes tidos como cult e que abalaram a nossa interpretação da realidade (vide o poderoso Black Mirror).
A linguagem de como esse processo se estrutura contribui para a complexidade e a possibilidade de experimentação estética. E falar de linguagem pode envolver aspectos pequenos, como movimento de câmera, fotografia, trilha sonora, até elementos maiores como a estruturação dos capítulos, a maneira como eles são disponibilizados, o desenvolvimento das temporadas (vide How I Met Your Mother em que a mãe do título só foi atribuída a uma atriz na última temporada, o que trouxe diversos problemas para o enredo).
Seja no formato antológico, em que cada episódio constitui uma história fechada, como em uma coleção de contos (vide Black Mirror), seja numa estrutura seriada que se foca no desenvolvimento da personagem – como o exemplo do senador que ascende politicamente de maneira corrupta até chegar a ser o presidente dos Estados Unidos (vide House of Cards) – a experimentação nessa nova era tecnológica tem trazido aos espectadores objetos culturais brilhantes.
A maneira como um artista pensa e retrata a sociedade em que vive diz muito sobre determinado momento, fazendo com que sua obra seja vista como um elemento da cultura e fruto de um meio social. Isso faz muito sentido quando consideramos a trajetória de Walter White, o protagonista de Breaking Bad – um professor de química que descobre ter câncer e por conta do sistema de saúde americano não ser público, ele precisa de dinheiro para pagar seu tratamento e com isso desenvolve uma fórmula de metanfetamina com alto nível de pureza e enriquece, ao mesmo tempo que seu caráter se corrompe, conforme adentra no mundo das negociações narcóticas e mantém como segredo para a própria família.
Enquadrados dentro das artes audiovisuais, o cinema e a TV consistem em uma experiência estética, pois causam uma reação no espectador, que por sua vez reflete sobre sua própria existência através de como a obra é organizada e apresentada.

Toda vez que Frank Underwood olha para a câmera, temos a famosa ruptura da quarta parede, um conceito desenvolvido pelo dramaturgo Bertrold Brecht, pois instiga a interação com a plateia.
Assim como a arte possui uma linguagem própria, atualmente precisamos considerar a tecnologia como uma ferramenta que também possui sua linguagem e peculiaridades. Desde a Revolução Industrial, as máquinas foram desenvolvidas para acelerar o processo de produção de mercadorias e facilitar o trabalho humano. Com o passar do tempo e o desenvolvimento tecnológico, foi possível atrelar o papel da tecnologia com questões mais abstratas, como no caso de Alan Turing e a solução do código contido nos telegramas entre soldados nazistas na Segunda Guerra, combinando onde e quando seriam os próximos bombardeios (vide o filme O Jogo da Imitação). Foi a partir de um protótipo de um computador que foi possível decifrar a comunicação entre os alemães e, eventualmente, deter com mais rapidez a estratégia de ataque nazista, uma vez que os engenheiros e cientistas da época não conseguiam sozinhos decifrar toda a gama de probabilidades com rapidez.
A partir do momento em que a tecnologia entra no campo do abstrato e da solução de problemas que o raciocínio humano não alcançava, entramos em um paradigma da condição moderna: os homens desenvolvem uma tecnologia para auxiliar e resolver problemas e, eventualmente, a tecnologia desenvolve uma autonomia que supera o intelecto humano. O que, por sua vez, causa receio da possibilidade de as máquinas se sobreporem aos seres humanos – um tema vastamente explorado pela ficção científica desde o fim do século XIX (vide o livro adaptado para o cinema Guerra dos Mundos, publicado em 1898.).
A junção da manifestação artística com o avanço tecnológico reflete de maneira mais profunda os triunfos da vida contemporânea, e ao mesmo tempo, a sua crise. Afinal temos à nossa disposição milhares de conteúdos inéditos – uma vastidão mais estratosférica quando consideramos o YouTube – que possui um determinado custo: a monitoração constante de dados, a personalização de preferências de conteúdo que gera a ilusão de exclusividade (o famoso “para você que assistiu X, confira o conteúdo Y”), o foco majoritário nos jovens (que representam a mão de obra ativa na sociedade) e a desvalorização da socialização, criando uma ideia de que o isolamento de cada um em suas casas pode ser suprido por meio da comunicação online.
Os resultados dessa revolução tecnológica fornecem ferramentas analíticas do nosso tempo. A questão do consumo imediatista, da preferência pela customização – e como esses dados são armazenados para compor um algoritmo personalizado e veiculado na propaganda – cria um paradigma da sociedade pós-moderna em que vivemos. E é na observação crítica desses objetos culturais que poderemos refletir sobre os nossos papeis sociais, o nosso momento histórico, e até mesmo sobre o futuro.