Por Caio Gomes da Costa
Bacharel em Ciências Sociais pela USP e professor do Cursinho Maximize
Nenhuma eleição presidencial no mundo tem a repercussão da estadunidense. O último pleito teve ainda mais visibilidade com a vitória do nova iorquino Donald Trump. Não apenas porque os Estados Unidos da América são o país com a economia mais rica do mundo, ou pois seu alcance e força militar são inigualáveis, mas pela novidade que a ascensão do republicano introduziu no debate político atual nas democracias ocidentais. Este texto pretende analisar como funciona o sistema eleitoral americano, o contexto no qual Trump venceu e suas bases de apoio para governar.
O sistema eleitoral americano
Apesar da grande força do Partido Democrata e do Great Old Party (Grande e Velho Partido) ou GOP, como é chamado o Partido Republicano, o sistema eleitoral dos EUA não é bipartidário no papel. Os EUA possuem grande número de partidos registrados, mas muitas vezes eles possuem uma escala estadual. Apenas os dois grandes partidos possuem capacidade de eleger membros nos 50 estados e no distrito federal.
Assim pode-se dizer que os EUA possuem um bipartidarismo de facto. Ao contrário do caso brasileiro, nesse país ainda se pode lançar uma candidatura independente de partido, mas a aprovação deve ser feita estado a estado. Isso faz com que exista candidatos que concorram à presidência em apenas certos estados. O que causa esse efeito é o sistema de eleição presidencial dos EUA, que é indireto.
Os cidadãos votantes de cada estado escolhem seu candidato e quem tiver mais votos, independente se for acima de 50%, ganha todos os eleitores do Colégio Eleitoral estadual que, em uma eleição posterior, votam no presidente[1].
Cada estado tem um número distinto de votos eleitorais baseado na quantidade de eleitores que o estado possui, no total são 538 eleitores. Ganha o candidato que obtiver, no mínimo, 270 votos. Caso nenhum candidato alcance essa marca, a Casa dos Representantes, equivalente da nossa Câmara dos Deputados, escolherá entre os três primeiros colocados na eleição do Colégio Eleitoral.
Esse sistema pode criar situações inusitadas: algum candidato pode ganhar apenas em um estado ou ganhar a maioria dos eleitores do Colégio Eleitoral e perder no voto popular. Essa última situação ocorreu nas eleições norte-americanas de 2000 e de 2016.

Imagem retirada de: https://macmillanmh.com/projectpresidency/election_central/electoral_college.htm
[1] Aqui faço uma diferença entre votantes e eleitores, como na época da Primeira República no Brasil. O cidadão é o votante e o eleitor é aquele escolhido pelos partidos para votar no Colégio Eleitoral.
O caso de Donald Trump
Passados os aspectos estruturais, vamos tentar compreender o caso das eleições de 2016: como Trump venceu? A resposta não é simples e passa pela análise da política estadunidense desde seu antecessor, o democrata Barack Obama.
Desde 2008, os EUA vivem em uma grande crise econômica que teve como seu estopim o derretimento das instituições bancárias. A mistura entre desregulação, corrupção e leniência levaram a uma crise que foi o primeiro grande obstáculo do então empossado presidente, em 2009.
O congresso, com maioria republicana, barrou muitas das propostas de Obama, sendo que um discurso crítico recorrente consistia na impossibilidade de o Estado interferir na escolha dos cidadãos de adquirir ou não certo serviço. De outro lado, as casas legislativas não fizeram oposição quando muito do orçamento do governo federal dos EUA foi utilizado para sanear os buracos deixados pela crise. Apesar do grande discurso de mudança do governo Obama, os estadunidenses não viram isso na prática.
O Facebook (bem como outras redes sociais) recentemente adotou ferramentas que permitem o cliente de seus serviços a ter informações que lhe agradam filtradas das que lhe perturbam, assim podem potencializar os anúncios e criam a ilusão de que todas as pessoas concordam com suas visões. Isso, combinado com a mudança cultural que ocorre desde o começo da presidência de Obama, que privilegia as ideias progressistas de multiculturalismo e tolerância sexual, criou uma divisão entre dois lados da sociedade que se configurou, na tradição americana, entre liberais e conservadores.
É nesse contexto que aparece Donald Trump, empresário bilionário que tem uma imagem de self made man (o homem que se fez sozinho), cujo discurso é avesso ao pensamento progressista, mas que é muito efetivo eleitoralmente. Ele defende o protecionismo econômico, um crescente isolacionismo internacional e o ataque a certos grupos religiosos.
Hillary Clinton, a candidata democrata derrotada, era a representante de uma geração progressista. Ela ganhou principalmente nas grandes metrópoles e perdeu nas regiões interioranas, justamente os locais que perderam com o processo de globalização. Apesar de defender ideias progressistas socialmente, ela era a escolha do mainstream (grupo majoritário) financeiro e internacionalista, por suas posições favoráveis ao liberalismo comercial, o que parece estranho para grupos de esquerda do resto do mundo.
Donald Trump passou de verdadeiro azarão para presidente da república por conta da estrutura peculiar das eleições americanas. Ele não é um representante tradicional do Partido Republicano. Ganhou as primárias dentro de seu partido de candidatos mais moderados como Ted Cruz e Jeb Bush.
Sua fama foi feita tanto da sua riqueza oriunda da indústria da construção civil e do mercado imobiliário quanto da sua exposição midiática. Ele foi o apresentador da versão original do reality show “O Aprendiz” e é o dono das licenças dos concursos de “Miss Universo”. Sua imagem para o público estadunidense, principalmente para a população dos locais onde ele foi melhor votado, é a de um executivo bem-sucedido que conseguiu chegar ao sonho americano.
O mapa da vitória de Trump
Trump ganhou nos estados do Sul e nas regiões interioranas, longe das grandes metrópoles que ficaram com os ganhos da globalização da economia dos EUA. O interior, onde ficavam as fábricas e plantações, sofreu com a diminuição da oferta de empregos para a China e outros países em desenvolvimento. Tal conjuntura criou regiões instáveis política e economicamente, como o caso da cidade de Detroit, no estado do Michigan, local que já foi o grande produtor de carros dos EUA e que pediu falência em 2013.[1]
A população dessas áreas sentiu-se abandonada pelo governo federal, principalmente pela administração Obama. Fato observado pela socióloga Arlie Hochschild[2] que passou um longo período em Louisiana, no sul dos EUA, para entender porque os trabalhadores votavam no Partido Republicano, normalmente identificado pela defesa da liberdade comercial e isenção fiscal para quem está no topo da pirâmide econômica. Sua pesquisa identificou que, principalmente, os homens brancos nessa região achavam que estavam ficando para trás na fila do sonho americano.
Ou seja, que grupos como afro-americanos, mulheres, latinos, funcionários públicos, imigrantes e refugiados estavam “cortando fila” no caminho do desenvolvimento econômico individual, que é a base para esse sonho. Votar nos republicanos e, principalmente, em Trump seria uma resposta. Fazer a nação ser grande novamente era o slogan da campanha desse candidato.

Imagem retirada de: http://www.businessinsider.com/final-electoral-college-map-trump-clinton-2016-11
[1] http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/02/150206_detroit_ressurreicao_lgb
[2] HOCHSCHILD, Arlie – Strangers in Their Own Land. Nova Iorque, The New Press, 2016.
Trump e a Direita americana
A partir desse sentimento surgem os movimentos populares da direita estadunidense, principalmente o Tea Party Movement (movimento da Festa do Chá), em alusão ao protesto que colonos americanos fizeram ao aumento progressivo dos impostos pelos ingleses em 1773. A grande figura do Tea Party Movement foi a candidata à vice-presidência em 2012 Sarah Palin.
Esses movimentos cresceram junto com a expansão de um circuito de mídia alternativa nos EUA. Nesse momento, houve a ascensão de figuras midiáticas como Bill O’Reilly, Sean Hannity e Rush Limbaugh, que promovem a mistura entre informação nem sempre correta e opinião de direita. Tais personalidades criaram um grupo forte de seguidores, que fizeram grande oposição ao governo Obama, algumas vezes injustamente, como no caso da certidão de nascimento.[1]
A direita fortaleceu-se com esses grupos, criando uma nova vertente, a Alt-Right (direita alternativa). Ela foge do conservadorismo tradicional ou do simples liberalismo econômico e busca confrontar o discurso progressista do partido democrata. Nesse grande guarda-chuva de posturas de direita, posturas populistas – como prometer a volta de empregos nos EUA – encontram-se com a postura xenófoba de proibir a imigração de certos grupos. Seja por lei, seja por muro.
Trump apostou certeiramente nesse grupo como base eleitoral, nomeando até um expoente dessas mídias alternativas como seu estrategista chefe, Steve Bannon. Quando Trump foi acusado de misoginia durante a campanha eleitoral, muitos desses veículos foram ao seu apoio e compararam o ocorrido com a presidência de Bill Clinton.
Mesmo depois da eleição, tal disputa continua a ocorrer. Trump acusa a mídia tradicional de manipular a verdade e incentivar o vazamento de informações, enquanto surgem evidências de que as eleições foram influenciadas pela atuação de hackers patrocinados pelo governo russo. Essa campanha sistemática de relativização da verdade, também conhecida como pós-verdade, pode ser um fator de utilidade para o aumento do poder político de Trump, pois pode diminuir os impactos de escândalos e ilegalidades de seu governo.
A imprensa estadunidense sempre foi vista como um quarto poder, mas seu enfraquecimento pode diminuir as capacidades fiscalizadoras da sociedade sobre as instituições políticas. Tanto que foi após denúncias do jornal Washington Post em 1972, no escândalo de corrupção chamado Watergate, que o presidente republicano Richard Nixon renunciou seu cargo. Agora esses veículos vivem uma crise de legitimidade.
A eleição de Donald J. Trump foi um marco na dinâmica política dos países ocidentais em 2016, junto com o plebiscito que optou pela saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit). O desenvolvimento de forças políticas da direita e seu rompimento com a proposta de um capitalismo globalista transformará os rumos da política internacional. A pergunta que sobra é: até que ponto esse rompimento será efetivo ou é apenas um mantra eleitoral? A China está pronta para uma retração dos EUA do mercado internacional, será que a grande potência das Américas consegue sobreviver? Essas perguntas serão respondidas nos próximos anos.
[1] Para tentar impedir a posse de Obama, um grupo de direita questionou a nacionalidade do presidente alegando que havia nascido no Quênia, portanto, não era estadunidense.