Por Isabella Bonaventura de Oliveira
Mestranda em História Social pela USP e professora de História no Cursinho Maximize
A conexão dos Guarani-Kaiowá com a terra é muito mais complexa do que as questões correntes acerca da propriedade de um território. Esse grupo se considera guardião das terras nas quais estão enterrados seus antepassados, sendo esta a sua razão de existir.
Através de dados disponibilizados pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio), observa-se a progressiva diminuição da população indígena entre 1500 e 1980, passando de 100% a 0,19% da população total do Brasil. Tais informações não trazem novidades, principalmente se recordarmos das tradicionais aulas de História, nas quais se ensina como as populações locais ou foram dizimadas por doenças trazidas da Europa, ou aceitaram ser integradas à marcha do progresso dos colonizadores. Temos contato com essa visão desde cedo: os índios como um grupo passivo que “necessariamente” se extinguiria, seja pela morte de sua população ou pelo apagamento de sua cultura.
Em quadros como A Primeira Missa no Brasil (1860), de Victor Meirelles, podemos perceber a posição de passividade com a qual os indígenas foram representados frente à cruz e ao bispo português, elementos que ocupam posição central na obra. Tanto o olhar deste quadro sobre a colonização como sua circulação nos livros de História (muitas vezes de maneira acrítica) permitem discutir como o processo de conquista territorial e cultural portuguesa foi, e ainda é, considerado o resultado de um movimento por meio do qual diferentes grupos humanos deveriam se assemelhar a um padrão europeizado de conduta.
Segundo Eduardo Viveiros de Castro, os indígenas são socialmente vistos como atrasados, uma etapa a ser superada. O termo índio viria acompanhado do advérbio “ainda” – tal grupo “ainda” é índio, enquanto outro “já não seria mais”. Segundo o antropólogo, “deixar de ser índio” teria como efeito a inserção dessas populações nas sociedades capitalistas, como subalternos: destinados a viver nas periferias das cidades e tornar-se mais um trabalhador pobre e explorado. Esta perspectiva de “integração” pelo apagamento possui uma longa história e compôs projetos políticos até a atualidade.
Se observarmos o Estatuto do Índio (Lei nº 6001, de 19 de Dezembro de 1973), embora as populações indígenas apareçam incluídas no “estado de direito”, essa legislação visava acelerar sua assimilação cultural: “Art. 1º – Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional. ” (BRASIL, 1973).
Através do Estatuto, destacam-se dois importantes aspectos à discussão da questão indígena. Primeiro: o estereótipo de que as culturas indígenas teriam “parado no tempo” e, portanto, deveriam ser “preservadas” em sua “genuinidade”, isolando-os em relação a outros grupos sociais. Segundo: com base nesta perspectiva de cultura indígena – sem contatos com as culturas ocidentais, “dinâmicas e tecnológicas” – os órgãos públicos seriam capazes de delimitar quem “realmente” é índio, justificando a retirada daqueles que “não são mais índios” de suas terras: “Naquela distante época, estávamos sendo acuados pela geopolítica modernizadora da ditadura – era o final dos anos de 1970 –, que nos queria enfiar goela abaixo o seu famoso projeto de emancipação. Esse projeto, associado como estava ao processo de ocupação induzida (…) da Amazônia, consistia na criação de um instrumento jurídico para discriminar quem era índio de quem não era índio.” (CASTRO, 2005, p.1).
O interesse político nas terras indígenas era justificado como iniciativa que “ocuparia e desenvolveria” a região Centro-Norte, entendida pelos militares como grandes áreas vazias. Tais projetos fundavam-se na suposta improdutividade das terras dessa região, as quais deveriam ser utilizadas na construção de projetos hidroelétricos (Tucuruí), de extração mineral (Projeto Carajás e Serra Pelada) e estradas (Transamazônica). Esses projetos, embora visassem isolar e silenciar os índios, desencadearam movimentos de resistência, que denunciaram abusos por parte do governo e grandes proprietários: “A grita suscitada com o projeto de emancipação resgatou a questão indígena do folclore de massa a que havia sido reduzida. Ela fez com que os próprios índios se dessem conta de que, se eles não tomassem cuidado, iam deixar de ser índios mesmo, e rapidinho. (…) então e enfim, os índios se tornaram muito mais visíveis como atores e agentes políticos no cenário nacional.” (Ibid., p.4).
Lideranças indígenas, muitas delas perseguidas durante a ditadura, fizeram-se ouvir no momento político da Constituição de 1988, pressionando legisladores para a obtenção de direitos civis alinhados ao seu modo de vida, sua relação com a terra e a natureza. Mudanças ensejadas por esse ativismo puderam ser percebidas nos anos 1990, quando as políticas para demarcação de terras deixaram de seguir parâmetros pré-estabelecidos e passaram a se basear em estudos antropológicos, considerando tanto a área necessária ao desenvolvimento de atividades de caça e coleta como perspectivas de uso futuro da terra.
Os resultados dessa ação política se refletem em dados estatísticos: segundo o IBGE, a população que se autodeclarava indígena aumentou em 150% ao longo dos anos 90 e também aumentou em relação ao crescimento geral: “Houve um aumento anual de 10,8% da população, a maior taxa de crescimento dentre todas as categorias, quando a média total de crescimento foi de 1,6%.” (FUNAI, 2017). Esses dados dialogam com o surgimento de novos grupos indígenas, chamados “emergentes”, ou seja, comunidades que antes não se declaravam como índios passaram a fazê-lo: tais povos eram oficialmente identificados como camponeses, entretanto, ao longo das últimas décadas, retomaram determinados aspetos culturais, reafirmando práticas nativas outrora em desuso.

Gráfico 1. Retirado de: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao

Gráfico 2. Retirado de: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao?start=3#
A presença dos povos indígenas nos recenciamentos do IBGE, desde 1995, permite observar sua complexa distribuição, que não se restringe à região Norte e áreas rurais. Conforme o censo de 2010 (gráfico 1), embora os estados do Norte abriguem a maioria dos índios recenseados: 305 873 hab., as regiões Nordeste e Centro-Oeste possuem uma população indígena expressiva, respectivamente 208 691 e 130 494 hab. O censo também demonstrou que, na região Nordeste (gráfico 2), a quantidade de índios residentes em cidades quase se equipara à dos que vivem no campo. O Sudeste e Norte são, respectivamente, a segunda e a terceira regiões em quantidade de indígenas na zona urbana.
A complexa distribuição dos indígenas no território nacional deveria ser considerada pelas políticas de demarcação de terras, que privilegiam a região da Amazônia Legal em detrimento de outros locais: “No Mato Grosso do Sul, por exemplo, a população indígena é expressiva, perto de 80 mil pessoas. Vivem em terras menores ao que o governo destina para assentamentos de reforma agrária. Simplesmente não têm condições de sobreviver. ” (SANTILLI, 2014).
Atualmente, o estado do Mato Grosso do Sul possui um dos mais sérios conflitos pela demarcação de terras. Os Guarani-Kaiowá reivindicam viver no território de seus ancestrais, enquanto latifundiários alegam serem proprietários “legais” das terras. A gravidade do conflito mistura-se à negligência do poder público, interessado em expandir a fronteira agrícola no Centro-Oeste. Assim, terras que já haviam sido demarcadas pela FUNAI voltaram para os fazendeiros, obrigando os Guarani-Kaiowá a viverem na beira de estradas e em terras menores. A resistência deste povo é respondida com violência: lideranças indígenas exibem balas alojadas em seus corpos e há, também, casos de assassinatos.
A conexão dos Guarani-Kaiowá com a terra é muito mais complexa do que as questões correntes acerca da propriedade de um território. Esse grupo se considera guardião das terras nas quais estão enterrados seus antepassados, sendo esta a sua razão de existir. Portanto, o remanejamento de terras não resolveria o conflito: os Guarani-Kaiowá demandam outras soluções que os permitam continuar nos locais onde estão assentados como uma comunidade integrada à terra.
As lutas indígena e socioambiental convergem, na medida em que diferentes etnias estabelecem uma relação sustentável e respeitosa com os recursos naturais. Tanto ambientalistas quanto índios se opõem aos latifundiários e aos projetos de cunho desenvolvimentista que ainda ocupam a cena política. Um exemplo disto é a construção da Usina Hidroelétrica de Belo Monte, apontada pelo poder público como indispensável para aumentar a produção de energia elétrica, devendo-se explorar a “Volta Grande do Xingu” (PA) com seu alto fluxo hídrico. Por outro lado, ambientalistas e lideranças indígenas acusam os órgãos públicos de iniciarem as obras de Belo Monte sem a anuência das populações nativas e antes da conclusão de estudos sobre impactos ambientais. Especialistas apontam que a construção das represas, as quais alimentariam suas turbinas, resultaria na diminuição da vazão de água em outros trechos, afetando os ecossistemas locais, utilizados como transporte e para a pesca por populações ribeirinhas e indígenas.
A fim de “resolver” esse problema, a Norte Energia (responsável pela construção da usina) deveria promover uma saída de interesse mútuo, mas restringiu-se a oferecer 30 mil reais para cada aldeia por dois anos. Entretanto, as lideranças indígenas não se contentaram, pois compreendem que o dinheiro se esgotará rapidamente, enquanto atividades como a pesca são, desde muito tempo, a base sobre a qual estes grupos subsistem.
Portanto, a questão indígena no Brasil envolve diferentes etnias em todo o território (e não apenas a região Norte e área rural), sua existência e ativismo dialogam com projetos socioambientais, direito à terra e à cultura. Ser índio no Brasil nunca foi fácil, na medida em que o poder público (apoiado pelo senso comum) sempre os considerou como um componente do passado que deveria ser integrado por meio de seu apagamento. Sendo assim, buscamos destacar como ser índio envolveu, e ainda envolve, a afirmação de seu modo de vida e, sobretudo, a luta pela criação de direitos.
Referências
BRASIL, Lei nº6001 de 19 de Dezembro de 1973. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6001.htm
CASTRO, Eduardo Viveiros de. “No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf
FUNAI. Índios do Brasil – Quem são. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao.
Jornalismo TV Cultura. Belo Monte – Uma Usina Polêmica (documentário em 6 partes). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YGL9k5Zpp1w
Martírio (Documentário) Dir. CARELLI, Vicente et all. Vitrine Filmes, 2017.
SANTILLI, Márcio. Confira a entrevista de Márcio Santilli ao Valor Econômico sobre demarcação de terras indígenas. Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-ppds/confira-a-entrevista-de-marcio-santilli-ao-valor-economico-sobre-demarcacao-de-terras-indigenas